Sobre A Genealogia da Moral III

Reflexão acerca de alguns pressupostos

Há, no mínimo, três pressupostos presentes na obra e que foram percebidos aqui. O primeiro pode ser traduzido pela exclusão do elemento divino, isto é, Deus, da equação que busca redescobrir a moral.
Por Deus, deve-se compreender o fundamento metafísico do regime moderno da moral, ao invés da figura religiosa ou do objeto de estudos teológicos. Compreender este mundo a partir de outro, vindouro, não é a prática escolhida pelo filósofo ao mencionar a decadência da sociedade, e, por extensão, da moral; do contrário, seria como se ele, o pensador, dissesse que Deus falhou em suportar a estrutura que justifica. Contrariamente, é o homem que deve parar de falhar ao repetir o erro de se apoiar em um consolo metafísico para a árdua existência e perceber que seus valores morais devem ser pensados aquém - e não além.
O segundo diz respeito à vontade de potência (ou vontade de poder). Se Nietzsche afirma que a compaixão ou o altruísmo não pertencem ao homem, mas, sim, ao espectro visual da modernidade e que o espírito humano começou a produzir costumes e deveres a partir de acordos, equilíbrio e prudência, isto é, com uma ideia ou de interesse, ou de autopreservação, então, Nietzsche deveria concordar concomitantemente com a inclinação do espírito à maldade, já que a compaixão e o altruísmo são supervalorizados na modernidade, o que ele não aceita, enquanto o interesse parece ser a razão comum á gênese da moral. Contudo, isto não é verdade por duas razões.
Primeira, o filósofo não diz que a compaixão e o altruísmo não fazem parte do espírito humano (apesar de desconfiar de sua autenticidade), mas que na modernidade eles acabaram se tornando o único caminho moral e única garantia da humanidade (atrelada à moral) e que esta ideia não estava presente na filosofia dos tempos passados com tamanha força ou papel. Em outras palavras, partiu-se a esse caminho (compaixão e altruísmo), pois foi atrelada aos valor da moral a ideia de bondade na direção da humanidade (na forma de um sujeito cercado pela miséria de suas condições de existência), e tal equação resolveria o problema da aparente falta de sentido da vida e seria, ao mesmo tempo, justificada e justificadora da e na vida pela presença de Deus, ou seja, o Sumo Bem, o sustentáculo de toda a estrutura: é este movimento irreflexivo e habitual sobre dois valores não questionados que o pensador condena.
Segunda, esta classificação do que é bom e mau torna-se inválida uma vez que Nietzsche busca redefini-la, daí ser mais coerente relacionar esta natureza com uma "vontade de potência", isto é, o instinto do espírito de sempre querer mais controle e poder, o que não se configura como maldade ou perversão.
O terceiro e último pressuposto diz respeito á inquestionabilidade da bondade pregada pela moral - algo já mencionado acima. "O que é isso que uso para adjetivar o mundo, esse 'bom'?"; "por que ele é bom? Por ser bom? Mas o que é ser bom e por que isto, o adjetivo bom, é bom? O que lhe assegura o 'valor em si'?". Questionar dessa forma isto que é aparentemente e dito (com rajadas de obviedade) como bom significa alçar o prenúncio de uma tentativa de extrair do não dito a prova de seu valor e a relação deste com o elemento humano. Duvidar, no entanto, do valor da bondade e dizer que o espírito pode, na verdade, ter sido enganado pela moral não significa dizer que o ser humano seja incapaz de ser bom, mas que aquilo que é tomado cotidianamente por "bom" pode não sê-lo de fato, pode não potencializar o humano, como certamente se acredita, mas, ao contrário, enfraquecê-lo ao lhe indicar uma direção diferente ou mesmo oposta (uma imposição em certo ponto de vista, já que não confere nem sequer um ensino que duvide ou problematize a si próprio, ou seja que prepare o campo para a construção do "gênio"); aquilo tomado por bom, como dizia, pode incutir no espírito uma ideologia do dominado (daí a proposta da revolução de Marx), uma vez que este "bom" fora construído dentro de um regime moral, o qual, por sua vez, fora encabeçado por um viés, que obnubila e é obnubilado pelas próprias práticas que engendra.

Comentários

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  2. A primeira vez que despertei para o pensamento de Nietzsche foi justamente quando me deparei com um comentário que exaltava o significado de "bom" , ou segundo as pesquisas do filólogo Nietzsche sobre o termo que para os romanos significava "guerreiro". Isso mesmo, bom era, para o romano, aquele que empunhava a espada e ia a luta e, por extensão, assim, defendia seu salário (os soldados romanos recebiam sal como pagamento). Bom era o guerreiro. Assim, o
    resgate do verdadeiro sentido da palavra "bom" faz todo o sentido para se traçar uma ideia fractal do pensamento nietzschiano no que diz respeito ao desvio de percurso que o homem ocidental sofreu com o advento do cristianismo. Daí decorrem várias implicações como o bom reduzido ao piedoso e o Deus, agora encarnado como aquele ser infinitamente capaz de perdoar e -por assim dizer- sendo a encarnação do bem, completamente irresponsável na distribuição do perdão aos que cometem faltas e pecados os mais aterradores passíveis.
    Deus pode, de certa forma, estar até mesmo excluido da equação que compõe as diretrizes morais do que se tem por bem, ou prática do altruísmo. Mas esta exclusão só faz sentido numa projeção diferenciada das ações humanas em que a ética tornou-se ateia. Nos dias atuais a nova onda fundamentalista ratifica a idéia do Deus salvador que a tudo perdoa, até mesmo ao mostro que esquarteja viva a sua vítima. Esta dimensão, de desesperado egoísmo, reflete a alta estima que o homem da sociedade de consumo, tomado pela ânsia de a tudo possuir, na busca de justificar o ego inflado, ressuscitar o supremo bem divino que para continuar sua senda de incrível vocação para a maldade, de um lado afirma: "Deus me salva"; do outro, se descompromissando, aduz: "Não sou Deus para perdoar".
    Recolocar Deus na equação do bem vem representando a deixa, o mote insofismável da sociedade capitalista para adiar o seu acerto de contas com a razão e a justiça social.

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    1. Ótimo texto publicado e ótimo comentário... pensando nessas colocações só me faz lembrar hobbies com a ideia de que o homem vive para sobreviver, o homem busca a segurança para a vida. Para hobbies essa segurança vem a partir do contrato dos homens com o estado, no qual o estado assegura segurança aos homens, recebendo o poder necessário destes homens para governar e garantir a vida. E para Nietsch? O que ele fala sobre como sobreviver? Ou melhor, como viver sobrevivendo?

      Obs: o homem para hobbies não é mau, ele apenas segue o instinto de sobrevivência, fazendo o que for necessário para viver e manter a vida dos seus. Para Nietsch, o homem é mau?

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  4. "Nietzsche afirma que a compaixão ou o altruísmo não pertencem ao homem, mas, sim, ao espectro visual da modernidade e que o espírito humano começou a produzir costumes e deveres a partir de acordos, equilíbrio e prudência, isto é, com uma ideia ou de interesse." Realmente se formos parar para analisar, somos bons com as outras pessoas para nos sentirmos melhores não só consigo mesmos, mas para nos socializar, além de que é pregado pela igreja que isso é o correto, faz parte da moral religiosa, mas não só religiosa, faz parte da ética, pois precisamos ter empatia pela outra pessoa. O problema que ele propõe, é desfazer essa imagem de que todo ser humano é bom. Nietzsche, na minha concepção, pretendeu e mostrou a verdadeira face humana. Não adiantar a gente se iludir que a maioria é bom, somos todos "assassinos" em potencial, levados pelo instintos, mas daí parte do caráter do indivíduo e da ética seguir pelo caminho considerado correto ou ruim, por isso penso que Nietzsche leva em consideração a individualidade pessoal e o instinto de sobrevivência.

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